Embora participem de 90% da produção científica no Brasil, os estudantes de pós-graduação não têm o tempo de estudo contabilizado como ocupação profissional, e desta forma, esse período é descartado na contagem para aposentadoria pela Previdência Social. Essa é uma das observações do Dossiê Florestan Fernandes - Pós-Graduação e Trabalho no Brasil, da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).
Em entrevista nesta terça-feira (25) à Agência Brasil, o presidente da ANPG, Vinicius Soares, doutorando em saúde coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), argumentou que o pós-graduando tem uma situação muito especial “porque, ao mesmo tempo que já é um profissional formado, já é um trabalhador, ele também está em uma formação continuada, meio híbrida, entre estudante e trabalhador”.
Notícias relacionadas:MEC empossa membros de colegiados do Compromisso Criança Alfabetizada.Inscrições para o Encceja PPL estão abertas até 4 de agosto.Só metade das escolas públicas têm projetos antirracistas, aponta ONG.A partir do dossiê, a ANPG está pleiteando para os pós-graduandos uma cesta de direitos básicos, que contemple direitos como estudante e também os trabalhistas, como um adicional por insalubridade para pós-graduandos que fazem cultura em laboratório e ficam suscetíveis a elementos químicos, por exemplo. “Os pós-graduandos ainda não têm esse direito”.
Soares explica que o dossiê está sendo oferecido à comunidade científica para servir de base a um debate com toda a sociedade, visando aprovar essa cesta de direitos ainda este ano. O pacote incluiria bolsa de estudos, tempo previdenciário, adicional de insalubridade, férias, direito à assistência estudantil, necessários para garantir a valorização desses jovens pesquisadores, elenca o presidente da ANPG.
Na análise de Vinicius Soares, o ponto mais importante do dossiê é garantir, no próximo período, a contagem de tempo da pós-graduação para a Previdência. “É a principal pauta e a gente entende como uma necessidade histórica, para a gente trazer o Brasil para o século 21. A gente agora vai precisar reconstruir o país, porque a ciência vai precisar ser um elemento estruturante dessa reconstrução. Mas só vamos conseguir fazer isso se, de fato, a gente valorizar esses jovens pesquisadores e permitir que eles saiam da universidade com seus títulos, e a gente consiga atrair novos talentos para a produção científica”.
O dossiê ressalta que apenas dois direitos já são assegurados por leis federais aos pós-graduandos: a meia-entrada em eventos culturais e esportivos e a licença maternidade.
O levantamento foi apresentado durante o 18º Encontro Nacional de Jovens Cientistas, realizado em conjunto com a 71ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O dossiê resultou de ampla pesquisa promovida pela ANPG em parceria com o Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ).
Desvalorização
O quadro traçado pelo dossiê aponta para uma desvalorização do jovem cientista no país. Isso tem causado, pelo menos, dois fenômenos sociais. Um deles é a fuga de cérebros para o exterior, para países que oferecem melhores condições, como Alemanha, Estados Unidos, México, França e China. Na Alemanha, por exemplo, os doutorandos não cursam disciplinas, mas começam a trabalhar em seus projetos imediatamente e são contratados pelas universidades. O pós-graduado já está incluso em todo o regime trabalhista alemão e recebe bolsa que varia entre R$ 20 mil a R$ 30 mil, com a conversão da moeda. Soares aponta que a Alemanha talvez seja o país que apresenta melhores condições para ciência e tecnologia no mundo atualmente.
No Brasil, a bolsa para doutorado, que deveria valer hoje R$ 7 mil, se houvesse correção inflacionária ano a ano, tem valor de R$ 3,1 mil, incluindo o último reajuste dado pelo governo federal. Na França, o mestrado é fortemente vinculado ao mercado de trabalho e existe grande interação e incentivos entre os setores público e privado. Nos Estados Unidos, a relação é de trabalho; há um contrato com várias cláusulas que estabelecem direitos e deveres dos pós-graduados.
O segundo fenômeno social é a própria perda de talentos no Brasil. “Porque tanto os mestres e doutores que a gente formou no último período como os atuais pós-graduandos estão evadindo da pós-graduação; não estão conseguindo permanecer na pós-graduação. Isso é algo que a gente vem alertando”.
O documento sinaliza que vai haver uma grave crise de formação de quadros técnicos no país. De 2019 para 2020, 4 mil doutores deixaram de ser titulados. Ao contrário dos países que lograram algum nível de desenvolvimento e aproveitaram a janela demográfica para investir nessa população de pós-graduandos, o Brasil não investiu nos últimos anos.
“Isso vai dar consequências no médio e longo prazo, sem contar os problemas que a própria graduação vem enfrentando”, assinalou Vinicius Soares. Segundo revelou, a evasão da graduação no país atingiu 60%, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Isso vai ter uma consequência direta na pós-graduação, porque os possíveis graduandos que poderiam estar se formando não vão entrar na pós-graduação.
Em 2019, o Brasil superou a meta de titulação de mestres, com 70.071 títulos concedidos, e totalizando 24.432 títulos de doutores, quase atingindo a meta de 25 mil. Nos anos seguintes, o volume de titulações caiu, em decorrência de uma soma de fatores, entre os quais a pandemia da covid-19, congelamento das bolsas e menores investimentos em ciência e tecnologia.
Mais de 85% dos doutores e quase 70% dos mestres no Brasil são ocupados nas atividades de educação e administração pública
Projetos
Atualmente, há 11 projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional relativos a direitos dos pós-graduandos. O mais antigo deles data de 1989, de autoria de Florestan Fernandes, homenageado no nome do dossiê. A ANPG pretende resgatar esse projeto, atualizá-lo e colocar para discussão e votação pelos parlamentares. Os dados apurados no dossiê vão auxiliar na construção das políticas públicas, assegurou o presidente da ANPG.
Soares informou que a ideia é continuar a pesquisa no segundo semestre, ampliando a mostra de 2,5 mil estudantes que responderam aos questionários, com o objetivo de lançar um segundo volume do trabalho no final do ano.
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