Open banking brasileiro: as definições de dinheiro foram atualizadas

Por Omarson Costa, colunista do Líder S/A

Open banking brasileiro: as definições de dinheiro foram atualizadas -


Foto de John Guccione no Pexels


Quando compôs os versos "Dinheiro na mão é vendaval", Paulinho da Viola tinha em mente uma pessoa gastadora. Meio século depois, a frase segue atual com outra conotação.

Qual foi a última vez que você preencheu um cheque? Teve de ir a uma agência bancária depositar ou sacar dinheiro no caixa? Retirou dinheiro de um ATM de madrugada morrendo de medo de assalto? Fez um TED ou um DOC? Abriu a carteira física e pagou algo em dinheiro vivo? Você já viu a tal nota de R$ 200? Pelo menos por enquanto, tudo isso ainda pode ser feito por quem gosta, só que ficará cada vez mais raro. A revolução tem nome e sobrenome: Open Banking.

Talvez ele seja um dos projetos mais bem sucedidos do Estado brasileiro. Pode parecer que tudo começou ano passado quando o assunto chegou à mídia, mas é uma discussão que vem desde 2002 com objetivo de modernizar o setor financeiro e reduzir a concentração bancária. Teve longo estágio de discussões e de regulamentações como a lei das fintechs e a criação dos bancos digitais em 2016.

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Os cinco maiores bancos comerciais do Brasil (Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, Caixa Econômica e Santander) detinham 81,8% das operações em 2020, índice que apresentou pequena queda em relação a 2019. Para se ter uma ideia do tamanho do poder que isso representa, de acordo com o Banco Central, os ativos dessas cinco instituições financeiras somavam R$ 7,4 trilhões no ano passado, quantia superior ao PIB brasileiro de 2019 (de R$ 7,3 trilhões).

Os problemas causados por essa conjuntura foram mapeados há tempos. Crédito caro e escasso, juros altos, muitas tarifas que tornavam os serviços pouco acessíveis para um contingente considerável de pessoas físicas e pequenas empresas que formam uma legião de desbancarizados.

O Open Banking tenta modificar esse estado de coisas e seu cronograma de implantação tem sido feito com muita cautela, seguindo sobretudo o modelo britânico, que é um dos mais adiantados do mundo.

A face mais midiática desse processo é o PIX, lançado oficialmente em 16 de novembro de 2020, que é um pagamento digital instantâneo gratuito (para pessoas físicas) com uma estrutura tecnológica centralizada pelo próprio BC. No cenário mais pessimista na época da implantação imaginava-se uma redução de no máximo 30% nas operações de débito, preservando as de crédito e outros recebíveis.

Em julho, o PIX havia avançado mais de 1.700%, derrubado 40% das operações de DOC, TED, ultrapassado de longe os boletos bancários e, claro, os cheques. Segundo o Banco Central, o mês de setembro acabou com mais de 330 milhões de chaves PIX em 215 milhões de contas cadastradas e já foi utilizado por mais de 100 milhões de usuários (gráfico abaixo).

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A terceira etapa do open banking, marcada para entrar em vigor em 29 de outubro deste ano, irá permitir que usuários do PIX realizem pagamento por meio de aplicativos que não sejam do seu próprio banco, como os de varejistas e de redes sociais. Um cliente poderá autorizar uma instituição a iniciar pagamento em seu nome e um correspondente bancário a enviar proposta de crédito para o banco de preferência.

Passados exatos 30 dias desse marco, está previsto o início de operação do PIX Troco e do PIX Saque, pelo qual os usuários do sistema poderão sacar dinheiro no comércio, fazendo um PIX para o lojista num valor superior ao da compra para receber papel moeda em troca. Em 2022 será a estreia do PIX parcelado, para quem não quiser comprar à vista, uma concorrência direta aos cartões de crédito,

Com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, às vezes pode ficar fácil perder de vista os resultados práticos de todo esse longo processo. Quando o Conselho Monetário Nacional baixou a norma em 2016 autorizando os bancos digitais, o Banco Central informava haver cerca de 330 milhões de relacionamentos bancários ativos no país, contando CPFs e CNPJs (lembrando que empresas e pessoas podem ter mais de uma conta).

Surgiram o Banco Original, o Neon e o Nubank, primeiro com um produto de cartão e só em 2017 com a NuConta. O termo Fintech começou a ser usado com mais frequência em 2018.

Quando entramos em 2020, antes do início da pandemia, havia 495 milhões de relacionamentos. O auxílio emergencial e as contas digitais ainda mais simples criadas pela Caixa e depois emuladas por outras instituições fez em cerca de seis meses o país ganhar 70 milhões de contas. Um ano depois, atingimos 725 milhões de relacionamentos bancários, com 182 milhões de CPFs. Esse é o tamanho da inclusão: 82% da população brasileira.

Não é à toa que os investidores demonstram um apetite insaciável pelas startups brasileiras em geral e as Fintechs em particular. Apesar das intempéries políticas e econômicas, até agosto deste ano as startups brasileiras receberam US$ 9,2 bilhões em aportes, segundo estudo da Sling Hub. As fintechs representam 7,7% do total de quase 18 mil startups. No entanto, abocanharam 35% da quantia.

Outro movimento interessante é o do chamado Corporate Venture Capital, ou seja, empresas comprando startups (veja quadro abaixo). Segundo a Distrito, batemos o recorde de aportes esse ano: 24 operações envolvendo fintechs nos primeiros 7 meses do ano, somando quase US$ 250 milhões. As Fintechs são as empresas mais maduras do ponto de vista de maturidade de investimento entre todas as categorias de startups.

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O que está por trás desse apetite todo

Qual o tamanho do impacto do Open Banking e do PIX? Essas operações, que são padronizadas e acontecem independente de um banco tradicional, provocam uma intensa queda na intermediação de toda a cadeia do dinheiro que envolve o fabricante do papel moeda, a Casa da Moeda, as empresas que transferem valores de dinheiro físico e, claro, os bancos.

Outro ator que perde força é o mercado de ATMs, os caixas eletrônicos. O Banco 24 Horas é o campeão mundial em volume de saques com uma rede de 24 mil caixas. Sua controladora, a Tecban, faturou R$ 2,5 bilhões em 2020, o melhor ano de sua história, conforme afirmou o seu presidente no relatório anual.

Soluções como o PIX Saque e o PIX Troco exercem forte pressão sobre esse modelo de negócio, ao permitir que o varejo ou lojas de departamento, como a Magalu, atuem como banco graças às fintechs que fornecem sistemas de Banking as a Service (BaaS) e Bank as a Platform (BaaP). A própria Tecban criou um Hub Digital para acelerar fintechs.

Vale lembrar que apesar da enorme capilaridade do Banco 24 Horas, ele só opera em 950 municípios e o Brasil tem 5.570 ao todo. Enquanto a internet está presente em todos os municípios, com 83% dos lares conectados e consumida por 152 milhões de pessoas. O acesso nas classes D e E mais que dobrou nos últimos seis anos com predominância de acesso pelo celular.

Quando chegar o PIX Parcelado, os terminais de pagamento (Cielo, Stone, etc.) e as operadoras de cartão de crédito vão ganhar um desafiante para seu confortável modelo.

Pressionado, o setor bancário tradicional vem aumentando nos últimos tempos o tom das críticas às Fintechs, sob o principal argumento de que elas conseguem ser mais competitivas porque têm menos obrigações e impostos a pagar.

Enquanto os grandes bancos apanham publicamente por conta das tarifas e juros altos em face dos lucros bilionários, o Nubank recebia um aporte de US$ 750 milhões, inclusive de Warren Buffett, e tenta obter um valor de mercado entre US$ 75 bilhões e US$ 100 bilhões para seu aguardado IPO na Nasdaq.

A Febraban conseguiu viralizar uma publicação na Internet na qual criticava o banco do cartão roxo, mostrando que seus juros eram, na verdade, maiores que os dos 5 líderes.

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Farpas à parte, o que está realmente por trás da guerra de palavras é uma constatação: com o dinheiro digitalizado, o banco, que há mais de 500 anos domina a expertise da cadeia de valor do dinheiro, deixa de ser estratégico. Com uma plataforma de Banking as a Service, qualquer empresa pode processar pagamento. Pra que vai armazenar dinheiro? Pra que moedas?

Não custa nada lembrar também que as moedas digitais, como bitcoin, ethereum, etc, estão conseguindo vencer a barreira da aceitação como meio circulante. De carros da Tesla, passando por ingressos de cinema a livros na Amazon, compras no Walmart ou na Microsoft em algum momento no futuro será natural escolher entre as nossas moedas nacionais e o dinheiro puramente digital.

Conforme expliquei em meu último artigo, a ampliação da utilização das criptomoedas impõe um problema importante para os governos, que é a perda da capacidade de determinar a política monetária. Um ministro da Fazenda não teria controle real sobre todas as variáveis da economia e esse é um debate que faz com que os Bancos Centrais ao redor do mundo estejam pensando em suas CBDCs (do inglês, Moedas Digitais do Banco Central).

Neste quesito, a China e a Suécia estão adiantadas. A segunda economia mundial baniu as criptomoedas e já testa o yuan digital. No país escandinavo, a E-Krona deve estar em circulação em cinco anos, segundo o BC de lá. Os EUA, acostumados com o dólar fazendo as vezes do padrão ouro, não têm a mesma dedicação em apressar o debate, mas vão acabar sendo atropelados pelos fatos. No Brasil também se discute sobre a criação de um Real Digital.

Claro que a digitalização do dinheiro traz riscos. Os criminosos estão inventando toda a sorte de golpes e até fazendo sequestros-relâmpago para "secar" a conta das vítimas. O BC resolveu limitar a quantia que se transfere à noite pra R$ 1 mil, medida de eficácia duvidosa. Outro potencialmente mais sério foi o vazamento das chaves PIX sob guarda do Banco do Estado do Sergipe. Elas não eram de clientes do banco, mas dos destinatários dos PIX feitos por clientes.

O que impressiona é a consistência do projeto de Open Banking brasileiro. Com todas as coisas em nossa história recente da qual não nos orgulhamos, esse modelo é muito bom e me parece em linha com o conceito dos 6Ds do pensamento exponencial, criado por Peter Diamandis – engenheiro, médico, empreendedor e cofundador da Singularity University.

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Gráfico mostra os 6Ds do pensamento exponencial / Fonte: Singularity University

Esse é exatamente o processo que está acontecendo com o dinheiro. Ele começou a ser digitalizado. Podemos dizer que o período de decepção foi, em grande parte, o ceticismo para com as criptomoedas, até pouco tempo chamadas de fraude.

A disrupção na cadeia de valor do dinheiro, no entanto, é real, provocando a desmaterialização das ferramentas que vão deixar de ser necessárias (cartões de plástico? maquininhas? ATMs?...) e a desmonetização ou barateamento dos serviços (compare o PIX gratuito versus o TED). A fronteira final é a democratização (a inclusão de toda a população na economia formal, com as consequências virtuosas que o processo traz em si).

Não é sempre que a gente dá sorte de viver num tempo que opera uma mudança tão grande na vida das pessoas, das empresas, da humanidade. É só mais uma entre tantas transformações sem volta que ainda iremos acompanhar. Já fez seu PIX hoje?



Omarson Costa: Executivo C-level e atuou na América Latina desde startups até empresas da Fortune 500 nas áreas de telecomunicações, internet, mídia, entretenimento, varejo e finanças. Um de seus mais recentes desafios foi ajudar a estruturar a operação da ROKU (Managing Director) e da Netflix (Business Development Director). Atuou como  Diretor de Desenvolvimento de Negócios da Mastercard, além de ter exercido posições na Microsoft, Telefónica, Nokia e HP. Atualmente é Diretor de Negócios na Accenture e conselheiro de administração para empresas dos setores de telecomunicações, serviços, publicidade e educação, além de colunista para IstoÉ Dinheiro, Teletime e SBT.

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