Hortas comunitárias resistem à urbanização em São Paulo

Experiências promovem alimentação saudável e encontros solidários

Hortas comunitárias resistem à urbanização em São Paulo - Reprodução


Quem entra na Rua Marquês de Herval, na Vila Saúde, em São Paulo, em princípio não vê nada de diferente. Mas em meio a casas e prédios, um estreito portão de ferro oferece passagem a um verdadeiro oásis. O Bosque das Mandalas é uma das 273 hortas registradas na capital paulista, segundo a plataforma Sampa Mais Rural, da prefeitura. Mais que a produção compartilhada entre voluntários e moradores, as plantações são experiências comunitárias que promovem alimentação saudável e encontro solidários.


“Já fizemos a feira. Levamos folhas de brócolis, almeirão, serralha, capuchinha, que eu não conhecia, mas comi as flores, uma delícia, e a salada ficou muito bonita. Levei limão. Só de saber que é sem agrotóxico é bom demais”, afirma Vilma Souza, 67 anos, que é de Goiânia, mas está em São Paulo para passar uma temporada com a filha. “Foi só assim que ela conseguiu me convencer a vir. Eu adoro verde, mexer com terra”, relata. Era o primeiro dia de Vilma no local. O espaço do Bosque das Mandalas é cedido pela empresa de energia (Enel), proprietária do terreno. 

Em faixa de terra que vai de uma rua a outra, a torre da Enel ocupa pequena área entre mais de 200 espécies não catalogadas, conforme estimativa de Clélia Carretero, 63 anos, uma das idealizadoras da horta que já tem cinco anos. “A agrônoma Débora Ota, que mora aqui ao lado, deu muitas dicas de Pancs - plantas alimentícias não convencionais. Ela disse: ‘planta taioba, que pode usar como couve’. No ano retrasado, conhecemos mais uma turma que quis trabalhar com tijolinho de bioconstrução, e erguemos essa parede. Tudo tem um pouco de cada pessoa que mora no bairro”, conta.

O Sampa Mais Rural reúne iniciativas de agricultura, turismo e alimentação saudável. No site da plataforma é possível visualizar a localização das hortas espalhadas pela cidade.

Solidariedade e encontro

A cuidadora Edilane de Souza, 33 anos, conhecida como Dila, mora há um ano em apartamento ao lado da horta. Ela acompanha Sueli Albano, 73 anos, que vem para o local aproveitar a sombra e o verde. Enquanto Sueli descansa, Dila ajuda as companheiras a tirar o mato, colher alimentos e plantar novas mudas. “Eu acho uma maneira bonita de ajudar, ser voluntária, ajudar as pessoas. E adoro trabalhar com a terra”, relatou à Agência Brasil. Clélia conta que o trabalho é feito em mutirão e é preciso sempre divulgar para que mais pessoas participem. “É trabalho de formiguinha. Usamos as redes sociais”.

Ana Borba, 82 anos, é a mais experiente da turma. “Esta aqui é a nossa curandeira natural”, diz Clélia. Ana, com um facão na mão e muita disposição, mostra orgulhosa os feitos dela na horta: “Plantei uma bananeira ontem, daquele pé de café, eu já fiz o pó e dei uma colher de sopa para cada um aqui. Fiz colorau com urucum, cará chinês é bom para regular diabetes e, com romã, você melhora a garganta”. O passeio pela horta mostrou que tudo ali tinha muito da sabedoria da Ana. Ela diz que o local é um reencontro com a infância, quando morava numa fazenda. “Moro ali ó, o pessoal diz que eu sou a vigia da horta”, brinca, apontando para a janela do prédio em que vive.

Conhecimento e integração

Na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), região oeste paulistana, a horta comunitária também é um meio de integração. “É um local de aprendizado. Sempre falo que é um lugar muito horizontal, uma grande coisa para uma instituição hierárquica, que tem a figura do professor como detentor de todo o conhecimento. A horta é onde o jardineiro sabe mais do que eu em relação à produção de muita coisa”, explica Thais Mauad, pesquisadora do Departamento de Patologia e fundadora da horta comunitária da FMUSP.

Já são oito anos de funcionamento. “A gente hoje fornece temperos para o Hospital das Clínicas. Toda semana, a equipe de nutrição vem aqui na horta, e a gente cede os temperos: cebolinha, salsinha, tomilho”, enumera. Outra ação relacionada à iniciativa é o oferecimento de uma disciplina de medicina culinária. “É justamente mostrar para o futuro médico a importância da alimentação saudável na gênese e no manejo de doenças”, explica. A professora lembra que essa é uma tendência entre os cursos de medicina, pois “sabe-se que a alimentação está na gênese de muitas doenças crônicas, hipertensão, diabetes e alguns cânceres”.

Thais explica que a horta é cuidada com trabalhos em mutirão e o apoio voluntário da comunidade. O que é produzido pode ser colhido para uso próprio. “A gente está vivendo uma situação de insegurança alimentar no país que é muito triste, com políticas públicas em relação à alimentação sendo desmanchadas, então a questão da alimentação permeia a educação médica”, acrescenta. 

De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), nos últimos meses de 2020, 19 milhões de brasileiros passaram fome e mais da metade dos domicílios no país enfrentaram algum grau de insegurança alimentar.