O que significa o fim do acordo militar entre as Coreias

Pyongyang envia soldados para reativar postos de vigilância após deixar o pacto firmado em 2018. Provocações deverão aumentar, avaliam especialistas, apesar de acordo ter sido violado constantemente pelo regime de Kim

O que significa o fim do acordo militar entre as Coreias - Reprodução


A Coreia do Norte enviou soldados para a sua fronteira sul para recolocar em funcionamento postos de vigilância que haviam sido desativados no âmbito de um acordo com a Coreia do Sul em 2018, disseram militares sul-coreanos nesta segunda-feira (27/11).


Provocações como essa deverão se repetir nas próximas semanas depois da decisão da Coreia do Norte de abandonar por completo o acordo entre as duas Coreias, destinado a aliviar as tensões fronteiriças.

Na quinta-feira passada, em resposta ao lançamento do primeiro satélite espião por Pyongyang, a Coreia do Sul suspendeu parcialmente o acordo. Já o Norte o abandonou por completo, avisando que "nunca mais voltaria a estar vinculado" a esse acordo.

Analistas afirmaram que a decisão de Pyongyang foi encorajada pela sua nova relação com a Rússia, que, segundo os serviços secretos sul-coreanos, forneceu a ajuda técnica para o lançamento, na terça-feira passada, do foguete norte-coreano que colocou em órbita o satélite espião Malligyong-1, depois de duas tentativas frustradas, em maio e agosto.

A agência de notícias estatal KCNA logo divulgou que o líder norte-coreano, Kim Jong-un, já recebeu as primeiras imagens do satélite, de bases militares americanas na ilha de Guam, no Pacífico. Segundo a KCNA, o satélite espião também teria capturado imagens de potenciais alvos na vizinha Coreia do Sul, especialmente em áreas onde estão localizadas bases militares dos EUA.

O novo satélite deverá ser usado para monitorar posições militares do lado sul-coreano da Zona Desmilitarizada da Coreia (DMZ), uma faixa que divide a península.

A Coreia do Sul havia indicado antes do lançamento que, se a Coreia do Norte ignorasse os apelos internacionais para não lançar o satélite, não teria outra opção a não ser se retirar do acordo de 2018, assinado por Kim e pelo então presidente sul-coreano, Moon Jae-in.

"O alerta da Coreia do Sul de que poderia suspender o acordo jamais iria dissuadir a Coreia do Norte de lançar um satélite militar", afirmou o especialista em relações internacionais Leif-Eric Easley, da Universidade Ewha Womans, em Seul.

Pyongyang violou acordo várias vezes

Para ele, a nova situação permite ao governo do presidente Yoon Suk-yeol se afastar de medidas de aproximação adotadas pelo governo anterior da Coreia do Sul e que, na análise do especialista, beneficiaram desproporcionalmente o regime de Kim. "Pyongyang violou o acordo inúmeras vezes", completou.

Easley avalia que as operações de vigilância com drones que Seul poderia implementar em breve ao longo da DMZ produziriam informações mais úteis do que o rudimentar programa de satélites da Coreia do Norte. Porém, "Pyongyang provavelmente usará voos de drones sul-coreanos como desculpa para novas provocações militares", ressalvou.

Na quarta-feira passada, poucas horas após o lançamento do satélite espião, o presidente Yoon aprovou a suspensão de uma cláusula do acordo que impunha uma zona de exclusão aérea ao longo da linha de demarcação terrestre e marítima.

A cláusula era impopular há muito tempo entre os militares sul-coreanos porque, na prática, proibia voos de reconhecimento perto da fronteira. Os militares argumentavam que isso reduzia a capacidade da Coreia do Sul de monitorar os movimentos das tropas no norte e de se antecipar e resistir a qualquer ataque repentino.

Coreia do Norte abandonou acordo

Na quinta-feira, a Coreia do Norte dobrou a aposta ao anunciar que estava se retirando totalmente do acordo. Um comunicado do Ministério da Defesa, divulgado pela agência de notícias estatal KCNA, afirma que suas forças "não estarão vinculadas" ao pacto e que todas as medidas militares "serão retomadas imediatamente". E acrescenta que a Coreia do Sul vai "pagar caro" pela sua decisão de se retirar de parte do acordo.

Já então analistas disseram que uma das primeiras decisões seria a restauração e reocupação de postos de vigilância dentro da DMZ.

Também poderão ser retomados os exercícios de artilharia perto da disputada fronteira marítima ao largo da costa oeste da península, e as manobras de inverno, em dezembro, deverão ser maiores do que nos anos anteriores.

Há também preocupação com o desenvolvimento de armas nucleares por parte de Pyongyang. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) confirmou que a unidade de pesquisa nuclear norte-coreana de Yongbyon retomou as atividades, e serviços secretos sul-coreanos alertaram que um sétimo teste nuclear subterrâneo poderá ocorrer em 2024.

Ex-agente: Acordo já estava morto

O ex-embaixador e ex-chefe da espionagem sul-coreana Rah Jong-yil declarou à DW que era inevitável que as tensões aumentassem na península assim que o acordo fosse rescindido, mas argumentou que, na prática, o pacto já era letra-morta havia algum tempo. "Eu diria que o fim do acordo em si não é tão significativo, pois o Norte havia repetidamente violado os seus termos nos últimos anos", observou.

Rah acrescentou que o Ministério da Defesa em Seul listou pelo menos 75 violações do acordo pelo lado norte-coreano desde que foi assinado, a maioria delas voos de drones operados na zona de exclusão aérea ao longo da fronteira, aparentemente com a intenção de testar a capacidade de detecção e resposta da Coreia do Sul.

"E agora que colocaram um satélite de reconhecimento em órbita, pode-se argumentar que grande parte do acordo de 2018 deixou de fazer sentido de qualquer maneira", acrescentou.

Para ele, é importante prestar atenção aos fortes investimentos em armas pela Coreia do Norte, o que o regime chama de sua "capacidade tridimensional": armas nucleares, mísseis de longo alcance – incluindo mísseis lançados por submarinos – e armas espaciais. "Esse é o desafio em que devemos nos concentrar agora", destacou.