"Colaborar, sempre, cargo no governo, não", diz Gilberto Gil

Em turnê pela Europa, Gilberto Gil nega que participará de um eventual novo governo Lula, falando à DW. Para o músico, a gestão Jair Bolsonaro representa "um grupo que tomou o poder acreditando no retrocesso".

"Colaborar, sempre, cargo no governo, não", diz Gilberto Gil - Edison Veiga


Um dos mais cultuados músicos brasileiros, Gilberto Gil decidiu comemorar seus 80 anos de vida com uma turnê pela Europa, na companhia de boa parte de sua família. Em momento controverso da história brasileira, ele ressalta que esta é sua "mensagem": atravessar o Atlântico mostrando sua arte. A turnê se chama Gilberto Gil & Family – Nós a gente e tem participação de seus filhos e netos.


"A música brasileira continua sendo um dos aspectos poderosos do nosso soft power", comenta Gil, em conversa com a DW. Essa diplomacia cultural, aliás, ele já fez também do outro lado do balcão: entre 2003 e 2008, nos dois mandatos presidenciais do petista Luiz Inácio Lula da Silva, o músico comandou o Ministério da Cultura – pasta extinta no governo Jair Bolsonaro, que a transformou em secretaria vinculada ao Ministério do Turismo.

Gil diz que não se vê novamente ocupando um cargo num futuro governo, embora ressalte que não se negaria a colaborar com o que fosse necessário. "Enfrentar aquele ritmo frenético... não dá mais. Oitenta anos, já fica difícil."

A reportagem esteve com o artista duas vezes na última semana, em Portorož, no litoral esloveno, onde ele se apresentou na noite da última quinta (14/07). Na véspera do show, em evento restrito no hotel onde estava hospedado, Gil respondeu à DW sobre o significado de comemorar o aniversário especial fora do país, justamente num momento político tão controverso. No dia seguinte, horas antes do show, a conversa prosseguiu.

DW: Qual é o significado de escolher celebrar esse aniversário tão importante, os 80 anos de vida, fora do Brasil, justamente em um momento político como este?

Gilberto Gil: A mensagem é que estamos vindo de longe, do outro lado do Atlântico, para trazer a música brasileira. Essa é a importância social e antropológica. Um pedaço da tribo brasileira veio aqui. Eu acho que a impressão geral é que a sociedade brasileira está vivendo um momento muito difícil, politicamente falando. Economicamente falando, também. Mas eu acredito que isso vai começar a passar a partir de novembro [primeiro e segundo turno das eleições estão marcados para 2 e 30 de outubro, respectivamente].

Celebrar os 80 anos é olhar para trás, em retrospectiva, ou já planejar os 90?

Acho que não é nem uma coisa nem outra. É o presente, o dia a dia, o que a gente está fazendo agora, o que o mundo está sugerindo, o que a pessoa está sugerindo, o que o entorno… Neste caso, a família, né?

Neste momento de reabertura depois do início da pandemia de covid-19, fazer uma turnê é ainda mais especial?

Sim, para todo mundo, o público, que ficou privado do convívio com os artistas. Tiveram um pouco, através das lives, da internet. Mas os lugares, enfim, os palcos ficaram esvaziados. Então é um reencontro importante. Até do ponto de vista emocional. Tanto para nós quanto para o público, eu acho.

Em 2003, você, como ministro da Cultura, fez um show na Assembleia Geral da ONU, em Nova York. No evento de 2021, a comitiva brasileira  sequer conseguiu entrar em restaurantes da cidade, já que o presidente Jair Bolsonaro se negou a tomar vacina contra covid-19. Onde foi que o Brasil se perdeu em termos de relevância diplomática mundial?

Com a chegada de um grupo que, enfim, assumiu o governo com perspectivas bem diferentes do sentido amplo, democrático, plural, diverso, contemplando as várias facetas da formação e do andamento mesmo da civilização brasileira. Um grupo que tomou o poder acreditando no retrocesso, por adoção de valores – antivalores de uma certa forma – muito conservadores, etc.. Acho que aí a gente, enfim… O poder foi entregue a um grupo com essa qualificação, ou essa desqualificação. Então, não poderia ser de outro jeito.

Mas a música ainda funciona como o nosso soft power?

Bastante ainda, principalmente pelo fato de que ela adquiriu reputação no mundo inteiro. Ainda hoje à tarde eu estava vendo um show de João Gilberto no Japão, a gravação inteira. A atitude devocional do público japonês diante daquele homem, seu violão, sua voz, sua magia de músico e tal. A bossa nova foi um marco nesse sentido.

Ela estabeleceu uma presença forte do Brasil. Garota de Ipanema, Chega de saudade, Desafinado: todas essas grandes canções que ainda são celebradas por gerações que foram se sucedendo e a nós todos que viemos depois, o Caetano [Veloso], o Chico [Buarque], o Ivan Lins, o Djavan, a Elis Regina, a Gal Costa, todo mundo, né? Isso tudo estabeleceu o que a gente pode chamar de uma reputação, de força cultural expressiva.

Isso tudo foi imantando a audiência internacional de uma receptividade muito grande da música brasileira. Então, nesse sentido, sim, a música brasileira continua sendo um dos aspectos do nosso soft power, um dos aspectos poderosos do nosso soft power.

E funciona para dentro do país também, não é? Isso de dizer "apesar do atual momento, apesar dos problemas, temos Gilberto Gil, temos Caetano Veloso, temos Chico Buarque"…

É uma coisa que já estava estabelecida já há muito tempo, praticamente também ali do momento em que a bossa nova se consolidou, quando surgiu a sigla MPB, que estabeleceu esse apreço muito intenso, muito forte em relação à música popular no Brasil, por parte do grande público. O grande público da classe média, os setores mais populares, as elites sofisticadas, os acadêmicos, todo mundo adotou a MPB como um valor importante no Brasil há muito tempo, e logo depois chegou a reputação internacional também que se somou a isso e dá hoje essa força. A repercussão interna e externa dão muita força à música popular do Brasil.

E como você lida com isso? É um fardo, uma responsabilidade gigantesca?

A parte que me cabe neste latifúndio, como diria João Cabral [Gil alude a verso do poema Funeral de um lavrador, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999)], que não é, na verdade, um latifúndio improdutivo. É o contrário, né? É uma terra na verdade muito produtiva, é uma terra produtivíssima, com revezamento variado de artistas.

Reforma agrária...

Reforma agrária, porque tem espaço para todo mundo, enfim. Eu sou um, ocupo um desses [espaços], uma dessas glebas.

Imagina um dia voltar a ser ministro da Cultura?

Não.

Nem se receber um convite?

Não imagino não. Já não tem mais…. Já estou… Oitenta anos, já…

Mas tem uma terra arrasada aí para consertar.

Eu sei, mas dou minha contribuição de outra maneira. Quer dizer: enfrentar aquele ritmo frenético de uma vida de executivo público, com trabalho interno muito intenso, viagens, trabalho externo diplomático, especialmente o que os elementos da cultura propiciam, não dá mais. Oitenta anos, já fica difícil…Colaborar, sempre; de outras maneiras. Mas ocupar um cargo no governo, não.