O risco é a paralisia decisória



Uma das interpretações mais conhecidas na ciência política brasileira sobre o golpe de 1964 foi elaborada pelo falecido professor Wanderley Guilherme dos Santos. Em seu livro “Sessenta e quatro: anatomia da crise”, o cientista político reuniu diversas evidências empíricas para argumentar que a ruptura institucional que levou os militares ao poder não teria sido o resultado das opções de políticas públicas do presidente João Goulart, mas sim o resultado de um colapso do sistema político então vigente, que teria se tornado incapaz de produzir decisões. O golpe de 1964 teria sido, então, o desdobramento de uma crise de “paralisia decisória”.

A situação da política brasileira no governo de Jair Bolsonaro (cuja relação com o Congresso Nacional é das mais desastradas) é, naturalmente, muito diferente. Não acredito que o País viva uma situação de crise institucional, ou que haja algum risco significativo de ruptura do processo democrático.

As opiniões em contrário costumam se basear em polêmicas surgidas a partir de postagens em redes sociais ou em pronunciamentos públicos do presidente. Falta a essas análises o exame qualitativo das políticas públicas efetivamente implementadas no atual governo.

Mas acredito haver alguns indícios – mesmo que preliminares e sujeitos a confirmação posterior – que o sistema político brasileiro esteja próximo de viver novamente uma situação de paralisia decisória. E não me refiro aos efeitos políticos da pandemia do novo coronavírus. O confinamento em que o País passou a viver não impediu, por exemplo, que deputados e senadores continuassem a deliberar sobre matérias legislativas.

É verdade que algumas análises da conjuntura política apontam para supostos riscos à democracia. Mas acredito que os dados empíricos disponíveis sugerem, no máximo, que o risco que vivemos não é o risco autoritário. Mas sim o risco de uma nova paralisia decisória, decorrente da baixíssima capacidade de articulação política do atual governo.

O quadro acima compara a produção legal brasileira no primeiro trimestre do ano passado com a do primeiro trimestre do ano em curso (faltando ainda alguns dias para o fim do mês de março).

O número de leis ordinárias sancionadas caiu de 26 para apenas 8. Trata-se de um patamar extremamente reduzido, indicando uma dificuldade do sistema político em produzir decisões. Nenhuma lei complementar foi aprovada e sancionada ainda nesse ano. Até mesmo o número de medidas provisórias editadas pelo governo também teve uma ligeira queda (de 9 para 7).

Por outro lado, o único indicador que seguiu uma trajetória ascendente foi o número de decretos presidenciais editados pelo executivo. Os decretos entram em vigor automaticamente, mas têm um alcance muito limitado, pois se submetem às leis em vigor.

Salvo engano, o panorama que emerge desses dados é o de um governo com enormes dificuldades para aprovar leis no Congresso, e que recorre cada vez mais a decretos meramente regulatórios. Se não for alterado nos próximos meses, esse padrão pode ser o preâmbulo de uma nova crise de paralisia decisória.

E já sabemos o desfecho das crises mais recentes de paralisia decisória no País. Esqueçam os golpes de Estado. O risco é o de um novo impeachment.

*Rogério Schmitt, cientista político e colaborador do Espaço Democrático

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