Dez anos após morte de Kadafi, Líbia segue à beira do abismo

Após uma revolta popular, o ditador líbio foi morto em 2011. Longe da prometida democracia, país foi então palco de anos de guerra civil, agravada por interesses conflitantes de potências estrangeiras

Dez anos após morte de Kadafi, Líbia segue à beira do abismo - Arquivo/Leonardo Lucena


"Anunciamos ao mundo que Kadafi morreu nas mãos da Revolução. É o fim da tirania e ditadura na Líbia." Com essas palavras otimistas, em 20 de outubro de 2011 o porta-voz do Conselho Nacional de Transição (NTC), Abdel Hafez Ghoga, anunciou a morte do despótico líder Muammar Kadafi.


Em fevereiro, animados pelo levante na vizinha Tunísia, os líbios se ergueram contra aquele que fora seu chefe de Estado desde 1969, tendo chegado ao poder através de um golpe. Os rebeldes tinham aliados poderosos: em março as Nações Unidas autorizaram uma mobilização militar, visando sobretudo proteger a população civil. Os subsequentes ataques da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) enfraqueceram consideravelmente o ditador.

Após meses refugiado, Kadafi se escondia agora em Sirte, no norte do país, cerca de 450 quilômetros ao leste de Trípoli. Cercado por adversários, o "líder revolucionário", notório por suas aparições excêntricas, tentou escapar por uma canalização de esgoto, mas foi capturado. Os rebeldes o mataram imediatamente e de forma brutal. Uma foto do cadáver ensanguentado correu mundo.

Depois da ditadura, a guerra civil

A insatisfação de amplos segmentos da população com o regime violento e arbitrário tivera, por um lado, motivos econômicos e sociais, como a alta dos preços dos alimentos e o elevado desemprego entre os jovens, explica Hager Ali, pesquisadora associada e especialista em Líbia do Instituto GIGA de Estudos sobre o Oriente Médio, em Hamburgo.

Desde o início, contudo, havia também reivindicações de democracia e do fim das graves violações dos direitos humanos atuais, assim como do esclarecimento das passadas – entre as quais o massacre do presídio Abu Salim, 1996, em Trípoli, que custara entre 1.200 e 1.700 vidas. "Esse crime foi característico da era Kadafi", afirma Ali.

Tão mais eufóricas, portanto, eram as esperanças de um recomeço. Porém já na época havia vozes de advertência, como a do então secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon: "O caminho diante da Líbia e sua população será árduo e cheio de desafios", alertou.

Cabia a todos os cidadãos cooperarem, pois "os líbios só poderão concretizar a promessa do futuro através de unidade nacional e reconciliação", instava o diplomata sul-coreano. Contudo, este não passou de um desejo otimista: em 2014 os tumultos da rebelião desembocaram em anos de guerra civil.

Aparato estatal viciado

As causas do conflito "couberam essencialmente ao aparato de poder que Kadafi criara", diz Hager Ali. De fato: uma das maiores preocupações do governante era um golpe de Estado militar, e sua linha de defesa foi manter fiéis militares de alta patente e colocá-los – assim como a seus próprios familiares – em postos estrategicamente relevantes.

"Ele também comprou a proteção de mercenários estrangeiros, ao mesmo tempo que manteve longe do poder os ranques mais baixos das Forças Armadas líbias", aponta a pesquisadora. Isso resultou em rivalidades que se mantiveram mesmo anos após a morte do ditador, ao lado dos conflitos de interesses entre regiões e etnias.

Durante a revolta, por um breve período os diversos grupos de fato estiveram unidos pelo desejo de derrubar Kadafi, mas as alianças se romperam após a queda dele. "Isso também se deveu ao fato de não haver arenas políticas civis em funcionamento, em que as diferenças pudessem ser debatidas e negociadas", relata Ali, do Instituto GIGA. Sucessivas eleições tampouco resultaram em unidade nacional.

Palco para interesses estrangeiros conflitantes

Em consequência, a Líbia viveu o destino típico dos Estados fracassados: o poder estatal se dissolveu, em breve havia dois governos, um na capital, Trípoli, o outro na cidade litorânea de Tobruk, no extremo leste do país.

Visando preservar e impor os próprios interesses, cada vez mais atores estrangeiros passaram a intervir na guerra civil, entre os quais a Rússia, Turquia, Egito e os Emirados Árabes Unidos. Grupos mercenários financiados por Estados estrangeiros se mantêm, em parte, até hoje no país.

O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, por exemplo, tentou fazer valer as pretensões de seu país sobre as jazidas de gás no Mar Mediterrâneo, através de uma aliança com Fayez Mustafa al-Sarraj, então chefe de governo internacionalmente reconhecido.

A Rússia, Egito e os Emirados, por sua vez, apoiavam o assim chamado "governo no exílio" de Tobruk, associado ao poderoso comandante Khalifa Haftar. Através dessa cooperação, Cairo esperava conseguir controlar as forças fundamentalistas islâmicas, em especial a Irmandade Muçulmana.

Os europeus, por sua vez, estavam desde o início acima de tudo interessados em manter longe de si os migrantes e refugiados que chegavam através da Líbia. Nesse sentido, em fevereiro de 2020 o ministro alemão do Exterior, Heiko Maas, enfatizava a necessidade de integrar no diálogo os países vizinhos da Líbia.

Paz líbia: distante visão futura

Igualmente numerosas foram as iniciativas para dar fim à guerra civil resultante em tantas violações de direitos humanos, e instaurar uma nova estabilidade no país árabe. Diversos enviados especiais da ONU tentaram trazer as partes do conflito à mesa de negociações – no que acabaram sucedendo, em diferentes ocasiões, inclusive em duas conferências para a Líbia organizadas pela Alemanha em 2020 e 2021, em Berlim.

Em fevereiro deste ano, os protagonistas líbios acordaram sobre o político Abdul Hamid Dbeiba como premiê interino, sob cuja égide se realizariam os preparativos para as eleições presidenciais e parlamentares de dezembro. Recentemente, contudo, o pleito legislativo foi adiado em um mês, e a almejada reconciliação segue se arrastando.

Como aponta Hager Ali, numerosos problemas do país seguem sem solução. Um dos desafios básicos para um futuro governo é, por exemplo, o controle sobre o Exército e outras forças de combate. "Há o perigo de as Forças Armadas não estarem controladas, ou só insuficientemente, e não acatarem as ordens."

Além disso, ainda existem diversos grupos que poderiam ignorar qualquer resultado das urnas. Assim, dez anos após a morte de Muammar Kadafi, democracia, estabilidade e independência em relação a potências externas permanecem sendo para a Líbia distantes visões de futuro.