BRASIL
Esquema de venda de joias: entenda os principais pontos
PF apura suposta atuação de organização criminosa para desviar e vender itens de luxo recebidos pelo governo de Jair Bolsonaro em viagens ao exterior. Ex-presidente nega irregularidades. Polícia pede quebra de sigilo
Uma nova investigação envolvendo o entorno do ex-presidente Jair Bolsonaro veio à tona nesta sexta-feira (11/08), com a deflagração pela Polícia Federal (PF) da Operação Lucas 12:2, que apura a suposta atuação de uma organização criminosa que desviava e vendia presentes de luxo dados ao governo federal por autoridades estrangeiras.
A suspeita, segundo a PF, é de que os valores recebidos nas vendas, realizadas no exterior, fossem diretamente para o bolso do ex-mandatário, muitas vezes em dinheiro vivo, para que não houvesse registros de transações bancárias em seu nome.
No âmbito da investigação, que realizou buscas e apreensões em endereços de aliados de Bolsonaro, a PF também pediu a quebra dos sigilos bancário e fiscal do ex-presidente e de sua esposa, Michelle. A operação foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, a quem caberá, também, a decisão sobre a quebra dos sigilos.
A seguir, confira em seis pontos o que se sabe até agora sobre o esquema de venda dos objetos de luxo.
Os personagens envolvidos
A Operação Lucas 12:2 fez buscas e apreensões em endereços de quatro pessoas próximas ao ex-presidente: o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e que já foi personagem de outras polêmicas envolvendo o ex-mandatário, como a suposta falsificação da carteira de vacinação; general Mauro Lourena Cid, pai de Mauro Cid e ex-colega de turma de Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) nos anos 1970; o tenente Osmar Crivelatti, também ex-ajudante de ordens de Bolsonaro; e Frederick Wassef, advogado que atua na defesa da família Bolsonaro.
A operação investiga se militares ligados ao ex-presidente fizeram negociações de joias e itens de luxo de maneira ilegal, cujo valor pode ter superado R$ 1 milhão. Os objetos foram dados a Bolsonaro como presentes durante o período em que ele esteve na Presidência da República.
Segundo a PF, os fatos investigados configuram crimes de peculato e lavagem de dinheiro. A operação foi batizada de Lucas 12:2 em alusão ao versículo 12:2 da Bíblia, que diz: "Não há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhecido".
A origem da investigação
A Lucas 12:2 foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes em desdobramento do inquérito sobre as chamadas milícias digitais, que investiga a atuação de uma possível organização criminosa na internet que atuaria com o objetivo de atacar o Estado Democrático de Direito e desestabilizar as instituições democráticas. No âmbito dessa apuração, aberta após o encerramento do inquérito das fake news, o entorno de Bolsonaro passou a ser investigado.
O documento da Corte que autoriza a Operação Lucas 12:2 cita especificamente o caso das joias vindas da Arábia Saudita em outubro de 2021 e que teriam sido incorporadas ilegalmente ao patrimônio do ex-presidente, em um caso que veio a público em março deste ano.
As peças sauditas foram presentes para o então presidente Jair Bolsonaro e sua esposa, Michelle, e entraram no país em comitiva do Ministério de Minas e Energia que esteve no Oriente Médio em eventos oficiais.
Quais são as provas do esquema
Uma das principais evidências apontando para um esquema de venda de joias seria um recibo de recompra de um relógio Rolex nos Estados Unidos onde aparece o nome de Frederick Wassef. Para a PF, esta seria uma "prova contundente" contra o advogado do ex-presidente.
Na decisão que determinou a realização da Operação Lucas 12:2, Moraes também cita o avanço das investigações da PF, apontando que o dinheiro das vendas dos presentes era remetido a Bolsonaro "por meio de pessoas interpostas e sem utilizar o sistema bancário formal". O objetivo seria ocultar "a origem, a localização e a propriedade dos valores".
Entre as provas obtidas na investigação está ainda um áudio que revela uma conversa de Mauro Cid, na qual ele cita 25 mil dólares "possivelmente pertencentes" ao ex-presidente.
No dia 18 de janeiro de 2023, Mauro Cid trocou mensagens com Marcelo Câmara, apontado como assessor de Bolsonaro, sobre a venda de esculturas presenteadas pelo governo do Bahrein durante viagem oficial.
Na avaliação dos investigadores, o general Mauro Lourena Cid estaria com o valor de 25 mil dólares, "possivelmente pertencentes a Jair Bolsonaro". Conforme o relatório, os interlocutores também evidenciaram receio de usar o sistema bancário para "repassar o dinheiro ao ex-presidente".
"Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai [Mauro Lourena Cid]. Eu estava vendo o que era melhor fazer com esse dinheiro, levar em cash [dinheiro vivo] aí. Meu pai estava querendo inclusive ir aí falar com o presidente. E aí, ele poderia levar. Entregaria em mãos. Mas, também pode depositar na conta. Eu acho que quanto menos movimentação em conta, melhor, né?", escreveu Mauro Cid.
Outro indício é uma foto em que aparece o rosto de Mauro Lourena Cid. Ao fotografar uma caixa com itens para que fossem avaliados, o militar acabou deixando seu rosto aparecer no reflexo.
Conforme as regras do Tribunal de Contas da União (TCU), presentes de governos estrangeiros dados ao governo brasileiro devem ser incorporados ao Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH), setor da Presidência da República responsável pela guarda dos presentes. Ou seja: esses itens não poderiam ficar no acervo pessoal de Bolsonaro, nem deixar de ser catalogados.
Joias no avião presidencial
Segundo as investigações, os desvios começaram em meados de 2022 e terminaram no início deste ano, mas os itens negociados foram recebidos em viagens desde 2019.
Em um dos casos descobertos pela PF, o general Mauro Lourena Cid recebeu, na própria conta bancária, 68 mil dólares pela venda de dois relógios, um Patek Phillip e um Rolex. Na época, o militar trabalhava no escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), em Miami.
Os itens saíram do país em uma mala transportada no avião presidencial. De acordo com a PF, Mauro Cid participou do desvio.
Entre os itens que foram retirados do Brasil no dia 30 de dezembro de 2022, um dia antes do fim do mandato de Bolsonaro, estão esculturas de um barco e de uma palmeira folheadas a ouro, recebidas durante uma viagem do ex-presidente ao Bahrein, em 2021.
Conforme a investigação, Mauro Cid tentou vender os itens em lojas especializadas na Flórida (EUA), mas não conseguiu porque não eram 100% de ouro.
Outro presente desviado foi um conjunto masculino de joias da marca suíça de acessórios de luxo Chopard, composto por caneta, abotoadura, anel, rosário árabe e relógio, recebidos durante viagem presidencial a Arábia Saudita, em 2021. Esse é um dos itens do caso que veio à tona em março, de joias que teriam sido incorporadas ilegalmente ao acervo privado de Bolsonaro.
Segundo a PF, Mauro Cid negociou o kit em uma casa de leilão de artigos de luxo nos Estados Unidos, mas as joias não foram arrematadas. Os investigadores estimaram que os itens podem valer 120 mil dólares.
"Os elementos de prova indicam, com robustez, que os bens constantes do segundo conjunto foram evadidos do Brasil, também em mala transportada no avião presidencial em 30/12/2022, para os Estados Unidos da América, onde foram encaminhadas, pelos mesmos agentes, principalmente Mauro Cid e Mauro Lourena Cid para a casa especializada em leilão Fortuna Auction, onde não foram arrematados por circunstâncias alheias à conta dos agentes", diz a PF.
Operação de "resgate”
A PF também informou que, quando o caso das joias sauditas veio a público, em março de 2023, e foi determinado que os itens deveriam ser devolvidos ao TCU, os aliados de Bolsonaro realizaram uma espécie de "operação de resgate".
Conforme inquérito, a recuperação dos itens foi feita em duas etapas. De acordo com a PF, Frederick Wassef recuperou um dos relógios Rolex, que havia sido vendido, e o trouxe ao Brasil após viagem aos Estados Unidos. Em seguida, o relógio foi entregue à Caixa Econômica Federal.
Em outro voo, Mauro Cid saiu de Miami para Brasília e entregou o restante das joias do kit para Osmar Crivelatti, outro ajudante de ordens de Bolsonaro.
"O relógio Rolex Day-Date vendido para a empresa Precision Watches, foi recuperado no dia 14/03/2023 pelo advogado Frederick Wassef, que retornou com o referido bem ao Brasil na data de 29/3/2023. O mencionado advogado entregou o bem a Mauro Cid, em 2/4/2023, na cidade de São Paulo, que, a seu turno, retornou o bem à Brasília na mesma data, entregando o bem para Osmar Crivelatti", diz a PF.
O kit completo foi entregue à Caixa Econômica Federal em 4 de abril de 2023.
O que afirma a defesa
Após a Operação Lucas 12:2 ser deflagrada, a defesa de Bolsonaro declarou que o ex-presidente "jamais se apropriou ou desviou" bens públicos. Em nota divulgada à imprensa, a defesa também afirma que Bolsonaro vai colocar seu sigilo bancário à Justiça.
Os advogados Paulo Amador Bueno e Daniel Tesser afirmaram que o ex-presidente já havia solicitado ao TCU o depósito dos presentes recebidos.
"Sobre os fatos ventilados na data de hoje nos veículos de imprensa nacional, a defesa do [ex] presidente Jair Bolsonaro, voluntariamente e sem que houvesse sido instada, peticionou junto ao TCU, em meados de março, requerendo o depósito dos itens naquela Corte até final decisão sobre seu tratamento, o que de fato foi feito. O [ex] presidente Bolsonaro reitera que jamais apropriou-se ou desviou quaisquer bens públicos, colocando à disposição do Poder Judiciário sua movimentação bancária", declarou a defesa em nota.
Já o advogado Wassef, pouco antes de vir à tona o recibo com seu nome, também negou participação na venda das peças. "Nunca participei de nenhuma tratativa, nem auxiliei nenhuma venda, nem de forma direta nem indireta. Jamais participei ou ajudei, de qualquer forma, qualquer pessoa a realizar nenhuma negociação ou venda", declarou, por meio de nota.