Falar também mata

Falar também mata - Arquivo


O noticiário político e a cena pública em geral estão repletos de uma torrente de “informações”, para não dizer de mentiras e falsidades, que põem a prova cotidianamente o nosso bom senso. O fenômeno chega a tal nível que, muitas vezes, torna-se difícil distinguir o verdadeiro do falso, como se tudo fosse simplesmente uma questão de opinião.


O presidente Bolsonaro e seu grupo, dentre os quais vários de seus ministros, comprazem-se com as mais absurdas afirmações como se estivessem simplesmente manifestando um seu “pensamento”, quando é a sua ausência que constatamos.

Há domínios da vida em que há confrontos de opiniões, sobretudo quando são argumentadas e justificadas. Há outros, porém, em que prevalece a ciência, com procedimentos e métodos perfeitamente estabelecidos.

Seguir regras. Ninguém discute, por exemplo, como se deve construir um edifício. Há regras perfeitamente estabelecidas que, se não forem seguidas, produzirão um desastre. Ninguém constrói um prédio prescindindo de ferro, cimento, cálculo, procedimentos, etc. Se alguém pretender utilizar argamassa e papelão para a edificação produzirá como resultado certo o seu desmoronamento. Será simplesmente uma fraude, coisa de charlatães. Se uma pessoa tem pneumonia ou outro tipo de infecção deverá seguir prescrições médicas que incluem o uso de antibióticos. Não há contestação ou “opinião” sobre isto. Se uma pessoa tiver câncer, dependendo do tipo e órgão, o seu tratamento incluirá cirurgia, quimioterapia ou radioterapia. Não se suscita nenhum debate a respeito. Agora, por que deveríamos discutir sobre a vacina, segundo procedimentos científicos mundialmente seguidos e reconhecidos?

Bolsonarismo. Ora, o presidente e os seus seguidores fanatizados não cansam de repetir a mesma idiotice- desculpem o termo, mas está ficando insuportável – de que a vacina contra o COVID não está “provada”, de que crianças não devem se vacinar, de que precauções sanitárias não devem ser adotadas e assim por diante. Checou-se ao cúmulo de se prescrever a cloroquina e derivados como uma espécie de solução mágica, na qual milhões de reais foram desperdiçados. E tudo isto mascarado sob a forma da liberdade de opinião, como se recomendações que podem causar a morte de pessoas devessem ser simplesmente acatadas. O presidente tem, mesmo, a audácia de reproduzir em suas redes sociais “opiniões” que supostamente desautorizariam a ciência, logo depois reproduzidas em suas mídias sociais, criando uma desinformação generalizada. Pergunta-se: há um único instituto de pesquisa ou universidade séria no mundo que defenda as “opiniões” do presidente e de seu núcleo? Cite-se um só! Não há, simplesmente porque eles tratam da ciência e não de charlatanice.

Ciência e charlatanice. É, portanto, importante distinguir entre ciência e charlatanice. A ciência tem entre suas condições métodos de pesquisa e avalição, acompanhamento dos pares, revistas científicas que apresentam os resultados abertos aos debates, procedimentos de conhecimento em laboratórios públicos e privados, ampla revisão dos resultados, utilização de pesquisas que separam por grupos, alguns com placebo, os medicamentos e vacinas testados e assim por diante. Nada é aqui deixado ao acaso. Se houver erro, serão evidentemente corrigidos dada a discussão sempre em aberto. Logo, trata-se de algo completamente diferente dos procedimento adotados pelo atual governo ao recomendar o uso de medicamentos completamente ineficazes e inadequados para o tratamento do COVID. Foi proposto aos brasileiros um tal de kid-COVID, que é nada mais do que uma “poção mágica”, ao gosto das superstições, preconceitos e charlatanices medievais.

A fala mata. Acontece que quando o presidente da República e, inclusive, ministros seguem a mesma “pauta”, em particular o da saúde, eles produzem efeitos, na medida em que há pessoas crédulas, pouco educadas, que tendem a seguir o Presidente que, por sua posição, é uma espécie de exemplo nacional. Comportamentos presidenciais tendem frequentemente a serem imitados, seja para o bem, seja para o mal. Se a recomendação for científica, sanitária, os efeitos produzidos serão amplamente favoráveis à população. Se, pelo contrário, a charlatanice for o seu norte, a morte de muitos pode ser também a sua consequência.