SBT analisa “A Lenda de Candyman”: até o sobrenatural está exausto de brutalidades raciais

O filme está em cartaz em todos os cinemas do Brasil

SBT analisa “A Lenda de Candyman”: até o sobrenatural está exausto de brutalidades raciais -


O filme da diretora Nia DaCosta é quase que uma sequência espiritual de O Mistério de Candyman (1992). Cabrini Green, onde o filme da década de 90 se passa está modificado: as casas suburbanas estão sendo demolidas e dando espaço para edifícios colossais, e com isso aquela comunidade está à beira de perder toda sua identidade. “Os brancos constroem o gueto e quando percebem que construíram um gueto, tentam apaga-lo”, primeiro de muitos momentos de gentrificação exposto tanto verbal quando visual na rodagem.

Para aqueles que não viram o longa de 92, fiquem tranquilos, logo de cara, em sua abertura, Troy (Nathan Stewart-Jarrett) é quem faz um retrospecto e atualiza os novos espectadores ao universo, em uma sequência bem brega em que conta a história trágica de terror, em meio a um jantar de casais e como não poderia faltar diz que onde vivem é mal assombrado, porém necessária para contextualizar quem nunca teve contato com a história. Após sermos contextualizados, nosso casal protagonista entra em tela e assume o papel de carregar o filme. O pintor Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen ll) passa por um processo de crise criativa, onde fica à sombra da esposa Brianna (Teyonah Parris), uma expositora de arte, dependendo exclusivamente da mulher para conseguir apresentar suas peças em exposições relevantes. Ao ouvir a história de Haley Lyle, o artista fica fascinado e acredita ter o material necessário para começar seu novo trabalho. A partir daí, com o início da pesquisa de Anthony, começamos em uma jornada bem mais profunda e exploratória da lenda de Candyman.

Como não poderia faltar em um filme de terror, temos um personagem expert na mitologia imposta no filme, sempre a postos para introduzir, explicar e tirar quaisquer dúvidas que o protagonista tenha, que nesse caso é William Burke (Colman Domingo), um morador e dono de lavandeira em Cabrini Green. Eles se encontram logo após Anthony se esconder temendo depara-se com uma viatura policial. “Eles estão aqui para nos proteger, ou para nos manter aqui dentro?” indaga William ao ver a situação. O filme não para por aí em destacar a hierarquia da cor da pele, quando nos é lembrado por William, após ser perguntado da lenda que ironicamente, várias vítimas negras foram violentamente mortas pela entidade aterrorizante, mas a história só continua e é passada para frente devido a única vítima branca. E isso se encaixa muito bem no que é a lenda de Candyman: uma entidade cuja imortalidade é imposta, apenas, conjurando seu nome e por extensão, a memória de sua tragédia. O espelho, aspecto rústico, lembrando Bloody Marry, é um belo toque de simbolismo para um “monstro” dos anos 90 e um, literal, reflexo da última coisa que as vítimas veem antes de sentirem a mutilação de seu anzol.

Ainda aprofundando na história macabra, percebemos, após vários relatos de William, que Candyman, ou Sherman Fields (Michael Hargrove), bem como Daniel Robitaille, o Candyman original, não tinham princípios vilanescos, foram apenas vítima de um covarde sistema racial imposto pela sociedade, onde ambos foram brutalmente assassinados por policiais por alegações e crimes que não cometeram. Candyman então não é um espírito maléfico, mas sim, convive com uma agonia que parece eterna e imutável, pois a história não para de se repetir, onde aparentemente a cor da pele é um motivo razoável para dizimar alguém, o que ecoa de forma retumbante na linha imposta, novamente, por William: “ele não é um homem, ele é a colmeia toda”.

“Ouse dizer seu nome” não é apenas o slogan do filme, mas uma alusão ao ecoante grito de guerra contra a aplicação indevida e letal da lei pelas autoridades em certos grupos de pessoas. O horror sempre foi usado para expor, em suas entrelinhas, uma discussão que não gostamos ou queremos mais discutir sob as vísceras da realidade e com Jordan Peele (Corra!, Nós) no roteiro, isso não poderia ser diferente. A Lenda de Candyman realiza um ótimo trabalho em denotar que a realidade vem se tornando, ou já é, bem mais assustadora e perigosa que o sobrenatural, onde em dizer seu nome, acarreta em toda uma evocação de uma dor emocional aparentemente irremediável. Já para quem ousa dizer o nome da lenda cinco vezes diante de um espelho, sente uma dor bem mais literal e aguda.

Mesmo precisando de personagens literalmente descartáveis, que não creem na mitologia para que o longa prove sua ferocidade, o filme sabe muito bem escolher suas vítimas, já que se no longa de 92 o que importava era o destino da personagem branca, aqui o desfecho de todos que possuem uma coloração de pele mais clara é o mesmo. Todo o elenco está um pouco mais que operante, com destaques louváveis para Mateen ll, que é o único que tem o arco desenvolvido, visto que os outros personagens tem dramas criados, porém esquecidos ao decorrer da rodagem. Temos uma pequena aparição de Tony Todd, mas eu não ousaria estragar o momento.

Jordan Peele, novamente, com maestria consegue equilibrar de forma harmônica todas as questões de ser um negro vivendo nos Estados Unidos dentro da sua predileção diabólica de histórias de suspense, chamar de terror é um pouco demais. Somado com um estilo visual de DaCosta temos dois cumplices que se unem à Robert Aiki Aubrey Lowe com uma trilha que soa com uma mistura de sons que chega a ser nojenta e digo isso como o maior dos elogios ao trabalho do compositor. Tudo isso misturado, temos cenas de carnificina enquadradas visando a desorientação, compostas com tanta violência e pitadas de humor negro que soam quase como um deboche, a qual a sensação de não ver o ato soa mais aterrorizante do que se tivéssemos visto.

A Lenda de Candyman é mais um ótimo trabalho artístico que visa discutir e expor um tema que nem deveria mais estar sendo abordado da maneira que é.  É um suspense visceral, outrora gráfico, mas principalmente simbólico, ao qual Candyman é um reflexo não só de Anthony McCoy, Daniel Robitaille, George Floyd ou Breonna Taylor, ele é, novamente, a colmeia toda, onde as ações violentas não são provenientes de um mau puro, mas sim reativas, de uma entidade que representa um povo que está exausto de ser pintado e tratado com a mesma brutalidade, onde sofreu, sofre e, pelo jeito continuará sofrendo nas mãos daqueles que deveriam os proteger.

Nota do Crítico: 7.0

Nota Média do Público (IMDb): 6.6

Comentários