SBT analisa “Inside”: genialidade e depressão andam de mãos dadas

O excelente filme está disponível no catálogo da Netflix

SBT analisa “Inside”: genialidade e depressão andam de mãos dadas -


Não se precisa de muito para provar a genialidade. Meu pai, apaixonado por futebol, repetia a mesma frase todas as vezes que via um jogador reclamando da chuteira: “craques são craques jogando até descalços”. E essa frase reflete muito o que é Bo Burnham e do que ele precisa para demonstrar sua genialidade em um filme: um quarto, um piano, uma câmera, um refletor e a si mesmo. Mas não se engane, nada ali é apenas uma manifestação do literal. O quarto é literal, mas também uma representação de nossas mentes, por vezes bagunçadas com nossos medos, neuroses, autodesprezo, onde a escuridão permeia o senso de uma prisão particular, representada pela porta sempre trancada, deixando claro que a fuga é impossível, mas com um pequeno espaço para a criação, seja de ideias, ou nesse caso, de arte. Em um canto, o piano, do qual tiramos composições a cada escolha que fazemos. Em outro canto, um holofote, para tentarmos iluminar aquele quarto escuro e atirar luz sobre nossos pavores.

Temos também o, possivelmente, maior fator desse filme: o tempo. O tempo que permeia o infinito de nossas breves vidas, que por mais que seja uma dor extensa, parece curta demais, onde inúmeras vezes me pego pensando: eu quero viver mais ou eu quero viver menos?  Burnham expõe a dificuldade que temos em conciliar pensamentos tão contraditórios: como posso pensar tanto em morrer, mas entrar em pânico após sentir uma pontada no peito? Como posso me sentir tão incapaz de ser feliz e ao mesmo tempo sentir a mais profunda alegria ao conversar com meus amigos, ou apensar vê-los existindo?

Novamente, pode parecer contraditório, mas o que me faz colocar tais pensamentos em palavras é um especial, apesar de ficar difícil distinguir um gênero próprio, essencialmente de comédia.  A obra é escrita, dirigida, montada, fotografada e protagonizada por Bo Burnham, um comediante que faz o árduo trabalho de encontrar e expor o humor através de suas fragilidades e vulnerabilidades, tanto físicas quanto emocionais, sendo a segunda a que gera os melhores momentos do longa. Burnham constitui seu ensaio cômico através de pequenas passagens que contém musicais satíricos, destaque para White Woman’s Instagram, passagens mais contidas e monólogos repletos de reflexões melancólicas.

Diferente do que se pensa, comédia pode sim conter dor, como mostra o precedente de que os maiores ícones do humor relatavam diversos tipos de agonias em seus trabalhos, bem como, Robin Williams, Richard Pryor, Jim Carrey e Chico Anysio. A depressão está bem mais presente da vida dos cômicos do que se imagina e com Burnham não é diferente. A distinção aqui é que ele não fica refém de precisar tirar o riso da audiência a cada cinco minutos e com isso, pode experimentar trabalhar em um ritmo e estrutura ainda não visto e seus trabalhos, que a priori pode parecer desconexo e sem liga, mas que quando se analisa como um todo nota-se uma estrutura eficaz e coesa dentro da proposta do humorista.

A ideia de compor um especial de comédia dentro de uma casa, ou cômodo, não é original, mas Burnham não usa o espaço em si para gerar o riso e sim para que, mesmo que aprisionado naquele quarto devido ao surto mundial da COVID-19, possa transcender o minúsculo ambiente não deixando soar como um show que se apoia no ridículo de fazer tal tipo de produto em determinado local. Para atingir este objetivo, ele executa composições cênicas magistrais, seja com luzes de neon, fazendo um sublime trabalho com as sombras ou usando ponto e contraponto para compor pinturas artísticas que se movem.

Como visto em trabalhos anteriores do autor, “Inside” também se trata de descontruir a própria desconstrução, onde uma sequência onde o idealizador reage a uma música feita por ele para o filme e, logo em seguida, a reação da reação, onde Burnham tem totais noções de que entende a fraude de ser um homem branco ciente de todos os privilégios que esta condição acarreta, e querer soar, de forma prepotente, como um salvador dos tempos modernos. Outra marca do comediante é a exposição das inseguranças que tem para com seu público, deixado claro em seu último especial de palco, Make Happy, onde diz precisar e temer os espectadores na mesma proporção e aqui não é diferente, o senso de querer dizer o que pensa tendo que se importar com os pensamentos de quem o assiste é um processo dolorido, pois tentar ser integro para com sigo mesmo e agradar os outros é um trabalho muito complicado.

O filme é, primeiramente, um especial de comédia, mas tem em sua essência o quão sofrido pode ser um processo criativo, onde o título “Inside” faz jus ao que vemos em tela, não apenas a parte de dentro daquele quarto, mas somos conduzimos em uma jornada por dentro da mente brilhante  de Bo Burnham, por onde vemos seus medos, fragilidades, sonhos, depressão, alegrias e toda sua genialidade. Não é por acaso que o filme se encerra com o idealizador totalmente nu à nossos olhos, pois era assim que ele se põe à nossa frente, exposto, se dedicando para que pudéssemos ver quem ele exatamente é: assim como nós.

Bem como Burnham, ao final do longa, sentimos o duro sentimento de não querer que aquilo termine, mas sim dure para sempre, pois não há nada mais desesperador do que voltar para a dura realidade de nossas vidas. “Inside” me fez rir um pouco, pensar muito e chorar bastante, pois me fez ver em tela quase que um reflexo de mim e como busco a morte há anos, mas também como luto para viver tantos outros dias que virão.

Nota do Crítico: 10

Nota Média do Público (IMDb): 8.8

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