SBT analisa ‘Coringa’: para se tornar igual a ele você só precisa de um dia ruim



JOÃO MARCELO MORAES - DE ARAÇATUBA

‘Coringa’ conta a história miserável, melancólica e a progressão da loucura de Arthur Fleck a cada derrota e injustiça pessoal em sua vida, que o leva a se tornar o personagem que dá título ao filme.

A direção é de Todd Phillips, cujo melhor trabalho é a primeira sequência de ‘Se Beber, Não Case!’.

Aqui, o diretor teria que se provar, por conta de não ter experiência com este tipo de peso dramático, mas o trabalho de Phillips é preciso. Ele sabe perfeitamente como enfatizar cada aspecto de seu protagonista, seja em planos fechados para mostrar todas as expressões possíveis de Phoenix, em planos detalhes em cacoetes ou na própria psicopatia de Fleck, em planos abertos para valorizar toda a fisicalidade de seu ator, a direção é feita com tanta acurácia que mesmo com o dinamismo da câmera em nenhum momento fica a sensação de uma direção intrusiva, o que é ótimo por se tratar de um filme pessoal, íntimo.

Os aspetos técnicos aqui são perfeitos. E por Phillips também escrever o filme, ele manipula e tem total controle sobre o tom do longa que não se perde, nem chacoalha para falar a verdade, em momento algum.

O que o diretor faz em termos de arco dramático é estupendo, as relações entre causa e consequência são verossímeis ao extremo. Quando o personagem sofre alguma queda pessoal, você, logo, vê o efeito que aquilo causa nele e a progressão de sua loucura. Quando você percebe, ele passou de um simples homem deprimido ao Coringa.

Mesmo com as mudanças sendo muito pequenas, é incrível percebê-las. O acúmulo de todas elas e o resultados final são satisfatórios de ver. É uma aula de como se desenvolver um personagem.

O filme tem um pequeno probleminha: em uma sequência onde revisita algumas cenas já vistas, ele fica expositivo demais. A mensagem já havido sido entendida. Parece que o diretor subestimou seu público, mas nada que afete a narrativa.

A soma de uma estética propositalmente poluída com muita textura viva, uma cinematografia sufocada com cores que dão a impressão de deterioramento, de algo estragado e uma mixagem e edição de som que dão vida a cidade, temos um filme que parece ter sido gravado nos anos 80.

A trilha sonora mescla muito bem a ironia da conversa entre áudio e vídeo. Junte isso a uma corda destoante e temos uma ótima trilha sonora desconvidativa.

Por conta destas escolhas técnicas, fica muito difícil não comparar ‘Coringa’ a ‘Taxi Driver’ de Scorsese e em diversos momentos a sensação de déjà vu é nítida.

Mesmo sendo um ator consagrado, Phoenix dá seu ápice dramático aqui. Muita gente elogiou sua transformação física, já que ele emagreceu 23 quilos para o papel, mas isso com uma dieta de maças e cigarros qualquer um consegue (frase de Jared Leto, talvez o mais camaleão do cinema).

O destaque aqui não é o físico do ator, mas sim a fisicalidade. Ele dá toques estúrdios ao personagem e a cada acontecimento, a mudança, mesmo irrisória, é alterada com um novo trejeito. Dramaticamente o ator está quase impecável, explico o quase mais para frente.

O personagem tem um problema que é incontrolável, mas é a tentativa de controlá-lo que é espetacular.

Você consegue sentir a dificuldade, a força que ele faz para se conter e a total frustração e a confiança perdida quando ele falha. Eu só achei um pequeno problema. Não sei nem se posso chamar de problema, mas me incomodou um pouquinho: na sequência em que ele abre o jogo e assume sua alcunha de Coringa, o personagem fica muito parecido com o de Heath Ledger, o tom de voz e os gestos se assemelham demais ao do ator póstumo e novamente a sensação de ‘já vi isso antes’ paira ao ar coisa que até então não se via.

No mínimo, Phoenix deveria receber uma indicação como melhor ator, se levarmos em consideração quem vem ganhando ultimamente a estatueta, ele pode ser até franco favorito.

Seria um pouco injusto compará-lo com Ledger. Se o vencedor do Oscar é apenas o coadjuvante e já pega o personagem pronto, Phoenix tem o filme para o desenvolvê-lo, com mais paciência, mais tempo, mais calma. A atuação de ‘Coringa’ é crua enquanto a que a de ‘Batman: Cavaleiro da Trevas’ é visceral e para mim superior.

O elenco de apoio é apenas operante. Todos os personagens estão lá com fio condutor do roteiro, todos têm seus propósitos claros, mas sem nenhum destaque.

O filme ainda traz uma crítica social muito pertinente, ele fala de meritocracia, da visão dos mais ricos para os mais pobres e vice-versa. Eu também gostei muito de como o Thomas Wayne é pintado aqui, desconstrói totalmente a visão que a maioria tinha do personagem e por ser um filme pessimista, caiu como uma luva.

‘Coringa’ é um filme pessimista, melancólico, miserável, injusto, crítico, com uma atuação espetacular e que NÃO, NÃO INSITA A VIOLÊNCIA, só mostra de forma nada menos que perfeita, a decadência e a progressão da loucura de um homem sem ter o que perder na vida e é uma aula de estudo de personagem, mas se tivesse dois minutos a menos seria perfeito.

Nota: 9,8

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